Na SQF a principal anormalidade lipoproteica nas formas graves e muito graves é a quilomicronemia, definida como a presença de quilomícrons circulantes no estado de jejum. Com concentrações de triglicérides >1.000mg/dL já se pode detectar a presença de quilomícrons no sangue; contudo, a quilomicronemia é mais provável quando essas concentrações ultrapassarem 1.500mg/dL. A relevância clínica das formas graves e muito graves da HTG deve-se à sua associação com um risco duas vezes maior de pancreatite aguda, cuja incidência aumenta em 3% para cada 100mg/dL >1.000mg/dL de trigliceridemia.
Algumas escalas ou escores de pontuação a partir das manifestações clínicas têm sido propostos para diagnóstico de SQF. O escore mais utilizado é o de Moulin que utiliza como critério de seleção a presença de hipertrigliceridemia grave (triglicérides >1.000mg/dL em jejum e fora da fase aguda), e pontua quando há presença de valores elevados de triglicérides (afastadas causas secundárias), história de pancreatite, dor abdominal recorrente, falta de resposta ao tratamento usual para redução de triglicérides, além de idade de início dos sintomas. O diagnóstico de SQF é muito provável se a soma dos pontos do escore de Moulin for > 10 pontos, improvável se < 9 pontos, ou muito improvável se < 8 pontos. Em nosso país recomenda-se o escore diagnóstico para triagem para um teste genético.
O teste genético dá o diagnóstico definitivo de SQF. Mutações em 5 genes diferentes têm sido implicadas no desenvolvimento de SQF, todas com efeito sobre a atividade da LPL, responsável pela remoção dos triglicérides dos quilomícrons e de outras lipoproteínas ricas em triglicérides na circulação, quebrando-os em ácidos graxos livres. Pacientes com SQF têm perda de função do gene que codifica a lipoproteína lipase (LPL), levando a níveis de quilomícrons extremamente elevados na circulação e, portanto, HTG grave. Outros genes também foram descritos como cofatores na ativação da LPL, a saber: APOC2, APOA5, LMF1 (do inglês, lipase maturation factor 1), e GPIHBP1 (do inglês, glycosylphosphatidylinositol anchored high-density lipoprotein binding protein 1). Os indivíduos serão considerados como portadores de SQF se apresentarem homozigose, os heterozigotos compostos ou duplos para um desses cinco genes canônicos para a SQF. O teste genético, se positivo, confirma a presença de SQF e deve ser empregado para guiar o tratamento, para rastreio de familiares de primeiro grau, para aconselhamento genético e planejamento familiar.
Referência: Izar MCO, Santos-Filho RD, Assad MHV, Chagas ACP, AO Toledo- Júnior AO, Nogueira ACC, et al. Posicionamento Brasileiro sobre Síndrome da Quilomicronemia Familiar – 2023. Arq Bras Cardiol. 2023;120(4):e20230203.
Normalmente, esses pacientes têm pouca resposta a medicamentos para reduzir os triglicérides plasmáticos, como os fibratos e os ácidos graxos ômega-3, e seu tratamento representa um desafio clínico. A doença por ser genética não tem cura. A base da terapia da SQF é representada por uma redução drástica da ingestão de gorduras (8 a 10% do total de calorias), terapêutica esta difícil de ser mantida ao longo do tempo. A adesão a restrições alimentares dessa magnitude ao longo da vida do paciente é difícil, afeta negativamente a qualidade de vida e não elimina completamente o risco de pancreatite em todos os pacientes. Além da dieta restrita em gorduras e carboidratos simples, existem novos tratamentos para a SQF.
A Volanesorsena é um tratamento inovador na SQF. Trata-se de uma molécula que possui uma sequência de oligonucleotídeos antisentido, ou seja complementar à sequência do RNA mensageiro que codifica a apolipoproteína C3 (APOC3), impedindo a sua síntese. A APOC3 é uma proteína que no nosso organismo inibe a quebra de triglicérides pela lipoproteína lipase, e que é deficiente na SQF. No estudo APPROACH, em pacientes com SQF, a Volanesorsena reduziu em 84% os níveis de APOC3 e os triglicérides em 77%, permitindo que os pacientes alcançassem valores de triglicérides <750 mg/dL quando associado à dieta restrita. Esse fármaco, que é injetável, deve ser aplicado uma vez por semana por via subcutânea em pacientes com diagnóstico genético confirmado de SQF, ou com atividade da LPL < 20%.
Referência: Izar MCO, Santos-Filho RD, Assad MHV, Chagas ACP, AO Toledo- Júnior AO, Nogueira ACC, et al. Posicionamento Brasileiro sobre Síndrome da Quilomicronemia Familiar – 2023. Arq Bras Cardiol. 2023;120(4):e20230203.
O tratamento da SQF baseia-se no seguimento de dieta com restrição severa de gorduras, com a finalidade de prevenir a síntese de quilomícrons, partículas formadas exclusivamente no intestino e que são responsáveis pelo transporte da gordura e colesterol de origem alimentar. Pelo fato de os portadores de SQF apresentarem mutações associadas à enzima lipoproteína lipase ou a seus cofatores, a hidrólise dos triglicérides alimentares se encontra comprometida. Por esse motivo, a dieta recomendada é bastante restrita e deve fornecer, no máximo, 10% das calorias ou 15 a 20g na forma de gorduras. Embora a restrição de gorduras seja o ponto mais importante no tratamento da SQF, a dieta também deve ser isenta de açúcares de adição, como sacarose e xarope de milho. A dieta também deve ser isenta de álcool, cujo consumo se associa com as concentrações de triglicérides. Além disso, o monitoramento da ingestão de vitaminas lipossolúveis, minerais e ácidos graxos essenciais é recomendado, e a sua suplementação pode ser necessária.
Referência: Izar MCO, Santos-Filho RD, Assad MHV, Chagas ACP, AO Toledo- Júnior AO, Nogueira ACC, et al. Posicionamento Brasileiro sobre Síndrome da Quilomicronemia Familiar – 2023. Arq Bras Cardiol. 2023;120(4):e20230203.
Na SQF deve-se restringir a ingestão de gordura na dieta em 10% a 15% do valor energético total. Assim, para uma dieta de 1500 kcal, recomenda-se até 150 a 225 calorias de gorduras por dia. Nessa dieta, o café da manhã pode conter 200 mL de leite desnatado, 2 fatias de pão integral, 1 colher de queijo cottage, ½ unidade de mamão papaia, e uma colher de sopa de aveia. No lanche da manhã, um figo. No almoço um prato raso de salada de folhas verdes, tomate, palmito e pepino, com uma colher de sopa de molho, três colheres de sopa de arroz cozido sem óleo, uma concha de feijão cozido sem óleo, uma posta de cação cozida sem óleo e com molho de manjericão e tomate, uma colher de brócolis refogado com alho e cebola e uma fatia de abacaxi. No lanche da tarde, 200 mL de iogurte desnatado, uma fatia de pão integral, uma colher de sobremesa de geleia sem açúcar e uma colher e meia de ricota light. No jantar, um prato raso de salada de folhas verdes, tomate, palmito e pepino, com uma colher de sopa de molho, omelete de clara (feito com duas claras) recheado com espinafre, tomate e abobrinha, uma unidade de batata assada com alho, sal grosso e alecrim e uma unidade de banana assada com canela. Para a ceia, 200 mL de iogurte desnatado.
Existem adequações de cardápio para 1800 cal, para crianças, gestantes. Nos lactentes, o aleitamento materno deve ser descontinuado e deve ser prescrito o leite desnatado. Os triglicérides de cadeia média podem ser suplementados para garantir o aporte calórico necessário, especialmente em crianças e gestantes. Todo o acompanhamento deve ser feito por profissional nutricionista especializado. Existem livros de receitas e aplicativos que auxiliam no cardápio e na contagem de calorias para os pacientes portadores de SQF.
Referência: Izar MCO, Santos-Filho RD, Assad MHV, Chagas ACP, AO Toledo- Júnior AO, Nogueira ACC, et al. Posicionamento Brasileiro sobre Síndrome da Quilomicronemia Familiar – 2023. Arq Bras Cardiol. 2023;120(4):e20230203.
Em pacientes com SQF a ingestão de gorduras além do recomendado eleva os níveis de triglicérides, uma vez que quem tem essa condição não consegue digerir as gorduras, levando ao acúmulo de quilomícrons. O paciente apresenta sintomas como dores abdominais frequentes, empachamento, diarreia, fadiga, fuga de pensamento, xantomas eruptivos, e pode ter episódios de pancreatite, situação muito grave, podendo ser fatal. Alternativas de cardápio com consumo restrito de gorduras, onde carboidratos complexos, proteínas de fontes pobres em gorduras e suplementação de compostos à base de triglicérides de cadeia média (TCM) que não elevam os quilomícrons, podem ser recomendados por nutricionista.
Referência: Izar MCO, Santos-Filho RD, Assad MHV, Chagas ACP, AO Toledo- Júnior AO, Nogueira ACC, et al. Posicionamento Brasileiro sobre Síndrome da Quilomicronemia Familiar – 2023. Arq Bras Cardiol. 2023;120(4):e20230203
A complicação mais temida para um paciente com SQF é a pancreatite hipertrigliceridêmica, que é menos frequente do que aquela decorrente de cálculos biliares, porém, se associa com maior mortalidade e pior prognóstico. Existe um risco maior de pancreatite quando os triglicérides estão acima de 1.000 mg/dL. Esse risco, bem como a gravidade, aumenta ainda mais naqueles pacientes com valores >2.000mg/dL. Na gestação, por ação hormonal, pacientes com SQF têm um risco aumentado de pancreatite. A falta de adesão à dieta pode aumentar o risco de pancreatites e muitos pacientes evitam reuniões sociais e festas, porque temem comer e desencadear pancreatite.
Referência: Izar MCO, Santos-Filho RD, Assad MHV, Chagas ACP, AO Toledo- Júnior AO, Nogueira ACC, et al. Posicionamento Brasileiro sobre Síndrome da Quilomicronemia Familiar – 2023. Arq Bras Cardiol. 2023;120(4):e20230203.
A SQF traz impacto nos domínios físico, psicológico e social ao paciente que comprometem sua sociabilidade e qualidade de vida. O estudo IN-FOCUS, avaliou 166 pacientes com SQF e mostrou o importante impacto da doença na qualidade de vida. Sentimento de impotência diante da doença, sintomas de fadiga e confusão mental são aspectos de campo interdisciplinar que podem persistir durante toda a vida dos pacientes com SQF. A preocupação quanto ao efeito da doença na saúde e na vida, ao longo do tempo, o desejo de ser capaz de viver uma vida normal e a preocupação com o impacto financeiro da doença afetam sobremaneira a estabilidade emocional dos pacientes e cuidadores, podendo produzir sentimentos de baixa autoestima e ansiedade, interferir na habilidade de raciocínio e de elaboração de soluções, e reduzir a qualidade do sono. Depressão, sentimentos de constrangimento, vergonha e inadequação social, percepção de mudanças no funcionamento cognitivo, por influência de dificuldades de concentração e memória, são aspectos da doença que corroboram para o declínio na qualidade de vida pessoal e profissional dos afetados. Segundo os pacientes conviver com a SQF consome o tempo e exaure a energia física e mental, tornando-os incapazes de se projetarem na vida. Adultos com diagnóstico de SQF podem expressar significativos prejuízos psicológicos relacionados à falta de autonomia e de liberdade na condução da vida, para além da doença. Espera-se que uma abordagem multiprofissional, o tratamento medicamentoso e a adesão às restrições alimentares reduzam a carga da doença nesses pacientes.
Referência: Izar MCO, Santos-Filho RD, Assad MHV, Chagas ACP, AO Toledo- Júnior AO, Nogueira ACC, et al. Posicionamento Brasileiro sobre Síndrome da Quilomicronemia Familiar – 2023. Arq Bras Cardiol. 2023;120(4):e20230203.
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